Antes da locomotiva de oito vagões partir da Estação Velha de Campina Grande, na Paraíba, para mais um de seus passeios ao distrito de Galante, em um percurso de 12 km e uma hora e meia de duração, as camisetas customizadas e obrigatórias, a aglomeração de pessoas e o som alto do forró entregam que este não é só mais um passeio comum. "Vendemos em média 900 ingressos, ao valor de R$ 60 cada. O trem comporta mil pessoas, e os abadás já estão esgotados há um bom tempo", explica Danielle Pinheiro, uma das responsáveis pela empresa que gerencia o Expresso do Forró, que existe há 11 anos e só funciona em alguns dias do mês de junho, dentro das atrações do 'maior São João do mundo'.A grande procura e o número limitado de viagens - este ano serão apenas nove - geram até um comércio 'informal' para a compra de bilhetes.O cambista Carlos, 37, negocia alguns ingressos na frente da bilheteria do evento. "Chego a vender um convite por até R$ 100. Muitas pessoas têm meu celular e me ligam para fazer reserva. Até entregar na casa do cliente eu entrego", conta. A 'ilegalidade' rola, inclusive, com o consentimento da organização. "Virou um banco de apostas. Não temos como controlar. Quem dá mais, leva. O turista vem disposto a pagar", explica Danielle.
Na Estação Velha da cidade, local que também abriga o Museu do Algodão, barraquinhas de bebidas, comidas e um trio tradicional de forró - com zabumba, sanfona e triângulo - se encarregam de iniciar o 'esquenta' do público de todas as idades que ali aguardam a partida do trem. Socorro Bispo, 48, rodopia com o filho Jefferson, 12, diante dos olhos atentos de vários curiosos, na maioria turistas, que em roda observam os passos do ritmo que rege o 'São João'. "Sou natural de Campina Grande e forrozeira de carteirinha.
Quero que meu filho cresça neste mesmo universo", explica. "Para o forró não há fronteiras. Eu, que enxergo apenas 10%, sinto o ritmo e saio dançando. A diversão é certa", conta, ao revelar sua deficiência visual.A chegada de quatro paulistas vestidos com roupas típicas de festa junina - um padre, uma noiva e mais duas 'caipirinhas' - chama a atenção em um espaço que une tantos estilos diferentes.
Empunhando uma revista masculina, o padre charlatão brada que veio 'orar e livrar todos ali dos pecados da carne'. Com um olho na lata de cerveja e outro nas meninas que passam de shortinho, chapinha no cabelo e salto alto, os solteiros paraibanos Reni Araújo, 23, e Erinaldo Barbosa, 27, riem das 'figuras' que aparecem ali vindos de outros Estados do Brasil, e pegam carona na brincadeira para explicar o motivo da primeira viagem no trem do forró. "Viemos para tirar uma onda dos turistas e, quem sabe, arrumar um casamento", diz Reni, em meio a gargalhadas.
Quando as portas do trem se abrem, a disputa agora é por um bom espaço para curtir a viagem. Com poucos assentos (a idéia é deixar o vagão mais livre para o 'rela bucho'), crianças, jovens, adultos e idosos tentam acomodar-se. Ao soar do apito que anuncia a partida e o início da cantoria nos oito vagões da locomotiva, todo mundo acaba se rendendo ao agito. Espontaneamente ou não.A partir daí, são 12 km de calor, suor, aperto, azaração e farra.
O trajeto do trem é acompanhado por uma verdadeira caravana do lado de fora. Carros, motos, jipes e até ônibus tentam participar da folia, e muitas vezes o som dos motores atrapalha a audição do forró pé de serra que rola lá dentro. Entre casas simples, esgoto a céu aberto e a poeira levantada pela 'carreata' paralela, os moradores da periferia de Campina Grande, por onde o trem passa durante seu trajeto, acenam para os 'forrozeiros', dando boas-vindas.
O ritmo lento da locomotiva e a falta de refrigeração no seu interior geram reclamações de todos os tons. "Eu adoro forró, mas dou nota seis para esse trem. É muito lotado, e ainda temos que ficar o trajeto todo em pé. Eu não paguei R$ 50 para ir à micareta! Pensei que fosse diferente", reclamou a professora e comerciante cearense Madalena Lopes.
Com mais um grupo de 26 pessoas, Madalena enfrentou 10 horas de ônibus para conhecer o 'maior São João do mundo', e conta que ficou impressionada com o tamanho da festa, mas principalmente com sua descaracterização. "A tradição parece estar se escondendo.
Sinceramente, estou um pouco decepcionada. Onde está a quadrilha? Tudo ficou muito estilizado.""A influência baiana já chegou aqui", sintetiza York Lopez, 28, de Salvador, na Bahia. "Estou gostando do passeio, mas nada mais é que uma micareta dentro de um trem, ao som de forró em vez de axé", conclui, comparando o modelito de um grupo de meninas que customizou o abadá, deixando a barriga à mostra, como os dos eventos baianos.Com o balanço natural da locomotiva, garotas agarram-se às barras de segurança e ensaiam coreografias de 'pole dancing' para provocar a ala masculina. "Olha, já me falaram hoje que eu estou parecendo a Alzira da novela (personagem de Flávia Alessandra na novela Duas Caras). Se isso me trouxer uma boa 'contabilidade' no fim do passeio, tá bom demais", explica sem meias palavras Robelsa Vasconcelos, 24, que estuda química industrial em Campina Grande. "Meu projeto é beijar cinco hoje. Mas tenho visto vários 'gordinhos'. Assim não dá", irozina.
De longe, quatro rapazes de quatro Estados diferentes (ES, BA, RJ e SP) observam a pouca timidez das garotas ao tocar uma música cujo refrão vale até coreografia: "beber, cair e levantar!" "Essas meninas estão assanhadas demais hoje em dia", avalia Diogo Rios, 26. "Pode ser no trem, no trio, onde for. Elas estão terríveis", completa Wernet Souza, 29.Contradizendo os rapazes que criticavam o 'excesso de atitude das meninas', Gilbert Jackson Ribeiro, estudante de medicina na Bahia, enchia de beijos e chamegos a professora paraibana Camila Monteiro. "Acabamos de nos conhecer - e bastou apenas um olhar para rolar uma química", explicou ele, que pela quinta vez faz o trajeto com o Expresso do Forró. "O ritmo facilita a aproximação das pessoas. A gente dança agarradinho, fala coisas ao pé do ouvido. Pronto! Tá mais que feita a conquista", explica ele. Em alguns minutos, o novo casal já fazia planos de se reencontrar. "Ela vai para a Bahia me visitar e eu, no ano que vem, volto para cá. São João como esse não existe em outro lugar". Com a paquera rolando solta dentro dos vagões, poucos são os que têm a oportunidade de observar a paisagem típica da Paraíba pela janela.
O funcionário público Silvestre Maia, 44, carrega o filho Franklin, 4, no colo e tenta distraí-lo do calor e da farra ao olhar pela janela, dando as costas aos forrozeiros. "Antes isso aqui era bem mais calmo. Os músicos andavam pelos vagões e havia espaço para dançar, inclusive quadrilha. Agora caiu nas graças desses patrocinadores - e a cultura é quem sai perdendo", resume.
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